Em novembro de 2022, eu me encontrava numa das fases mais tensas da minha vida. Estava reaprendendo a andar de bengala após um acidente que quase me matou no ano anterior, ainda sentindo os efeitos de ter perdido o olfato devido ao COVID, e meu emprego de uma década já não existia mais e meu namoro de quatro anos também estava caminhando para o final. Não suficiente, pairava sobre nós a possibilidade de reeleição do pior presidente que este país já viu.

Foi nesse ponto de exaustão que entendi que minha relação com a internet precisava de uma ruptura. Mas esse rompimento não foi algo repentino; na verdade, estava sendo construído desde muito antes.

Amadurecendo online

A internet como válvula de escape

Nasci numa cidadezinha com 20 mil habitantes no interior de Santa Catarina — um lugar tão remoto que era mais rápido chegar à Argentina ou ao Paraguai do que ao litoral do estado. A economia local era movida pela agropecuária. Embora morássemos na cidade, a roça estava sempre a poucos minutos de distância. Ou a alguns passos, se considerarmos que boa parte do que consumíamos era plantada e colhida na horta de casa.

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Uma das memórias mais marcantes da infância foi presenciar a matança de um porco. O animal era pendurado de cabeça para baixo, e sua barriga, aberta até que morresse. Os gritos dele ainda me assombram. Naquele dia, eu não precisei participar do ritual, mas a lembrança me deixou uma lição: nem toda tradição familiar precisa ser carregada conosco para o futuro.

Desde cedo, também soube que não era minha vocação andar a cavalo ou me encaixar nos ideais conservadores da minha terra natal. Santa Catarina é notoriamente conservadora: havia um tio delegado, outro pastor. Eu nunca fui hostilizado por ninguém da família, mas também nunca me senti confortável em assumir minha orientação sexual. Vivia como um peixe fora d’água.

A internet chegou para mim como uma janela de escape. Aos 13 anos, comecei a postar fotos no Flickr e DeviantART — comunidades onde postávamos fotografia antes do advento do Instagram. Era lá que eu encontrava a validação que faltava no mundo real. Se, offline, não sentia que havia espaço para ser aceito, o reconhecimento de estranhos online me deu um vislumbre de pertencimento.

Eu aos 14 anos

As redes sociais me deram algo precioso: a sensação de que, mesmo vivendo em um ambiente hostil, eu poderia ser autêntico em algum lugar, mesmo que virtual. Mas essa aceitação vinha com um custo: a performance constante.

Performar para o algoritmo

Eventualmente me cansei de fotos e — como bom nerd — migrei para escrita. Com 16 anos, criei um blog para compartilhar tudo que me fascinava: dicas para usar o Google, uma fotonovela protagonizada por um iPod mini ou o que considero até hoje o melhor videoclipe do mundo. Mas, aos poucos, percebi que para atrair mais leitores, precisava agradar... não às pessoas, mas aos algoritmos.

Deixei de escrever por paixão e comecei a produzir conteúdo otimizado para SEO. Sacrifiquei minha autenticidade em troca de validação digital.

Essa transição é a mesma que vejo hoje em jovens moldando suas personalidades para algoritmos de redes sociais, buscando aceitação através de números, em vez de conexões autênticas.

Enquanto o individualismo radical é frequentemente celebrado, ele também tem um custo significativo. [...] A cultura de interioridade nos faz pensar que precisamos descobrir quem somos. Grande parte da autoajuda da psicologia pop que alimenta a indústria da autenticidade sustenta que o nosso eu verdadeiro é como uma espécie de ilha perdida que só pode ser descoberta quando se conhece bem as águas perigosas das tentações externas. [...] Por exemplo, Charles Taylor (1992) argumenta que o desejo moderno de autenticidade é frequentemente motivado por uma sensação de que nossa vida está despedaçada e é difícil, senão impossível, reconstruí-la vidas de maneira significativa. Ele sugere que recuperar a autenticidade implicaria na criação de um espaço onde possamos novamente elaborar narrativas coerentes que unam a nossa vida.
Guilty lives: The authenticity trap at work

Uma vida mediada por telas

Como Millennial que nasceu no final dos anos 80, fiz parte da última geração que soube como era a vida sem a mediação de telas e acesso à internet. Eu atendia o telefone sem saber quem estava ligando, aparecia na casa de um amigo sem o avisar e andava de bicicleta sem meus pais saberem do meu paradeiro.

Nossa geração era entusiasta de redes sociais quando tudo era mato os feeds eram apenas postagens cronológicas sobre o que nossos “amigos” jantavam. Mas assim que os algoritmos começaram a moldar essas experiências, sentimos o que estava acontecendo e conseguimos dar um passo atrás. Nós lembramos — mesmo que vagamente — de um mundo onde estar constantemente online não era inevitável.

Em um filme de ficção científica dos anos 1950, mochilas a jato e capas de invisibilidade simbolizavam o futuro…

O que futuro nos trouxe ao invés disso foi um caixinha de vidro que cabe no bolso, nos permite se conectar com mais de um bilhão de pessoas, sabe onde estamos, tem todos nossos contatos, a soma total de todo conhecimento já publicado, uma das melhores câmeras já desenvolvidas, um tradutor universal e um sistema que pode medir nossa frequência cardíaca.

via Living in the future - Seth's Blog

Esse acesso constante a distrações prejudica nosso sono e saúde mental e nos torna menos produtivos. A simples presença de um smartphone pode reduzir nossa habilidade cognitiva — mesmo que o telefone esteja desligado. Sem falar que esse uso desenfreado causa conflitos em casamentos.

Detox Digital

De um cansaço generalizado ao burnout

Como muitas histórias, foi durante a pandemia que tudo começou a desmoronar:

  • março de 2020: eu estava com férias planejadas para quatro destinos. Nunca tinha tirado tanto tempo na minha vida para viajar, obviamente tudo foi para o brejo.
  • maio de 2020: peguei COVID, mesmo em isolamento. Não tive nenhuma complicação grave, se é que você pode considerar ficar sem olfato por 12 meses como ameno, normalmente isso dura só alguns dias. Precisei fazer "fisioterapia olfatória" — cheirando óleos essenciais e odores familiares enquanto imaginava o que estava sentindo, mesmo não sentindo cheiro de nada.
  • novembro de 2021: tive um acidente neurológico grave que quase me matou, fiquei dez dias em coma e acordei sem conseguir me movimentar. Mas o que mais me deixou aflito foi que na época, eu não sabia se iria voltar a andar ou digitar.
  • novembro de 2022 enquanto me esforçava para voltar à normalidade no trabalho, reaprendendo a andar, acabando um namoro e logo após uma eleição que deixou todo o país aflito, fui desligado do emprego que estava há uma década.

Se já é exaustivo assistir à "perfeição" maquiada das redes sociais, imagina assistir a um vídeo de alguém correndo enquanto eu estava preso a uma cadeira de rodas, sem saber se voltaria a andar. Ou então ver alguém reclamando de uma briga trivial com a namorada enquanto minha vida parecia um campo de batalha — fazia meus olhos revirarem com tanta força que quase davam uma volta completa.

Foi nesse momento que percebi que estava amargurado. Não deveria ficar ofendido com um mero post.

Eu estava tendo um burnout de redes sociais.

O peso de estar conectado

Mas não são apenas nossos empregos que podem ocasionar burnout. A comunicação eletrônica e as redes sociais passaram a dominar nossas vidas diárias, em uma transformação sem precedentes cujas consequências só podemos, portanto, adivinhar. [...] Nossos relacionamentos parecem exigir uma alimentação contínua de reafirmações eletrônicas, e nosso próprio senso de identidade é cada vez mais definido por uma espera interminável pelos veredictos de uma multidão inumerável e invisível de juízes virtuais.
via Is there more to burnout that working hard?

Era a hora perfeita para um detox digital. Desconectar. Ficar offline.

Como assim desconectar?

Não fiquei completamente offline. Acho isso tão desnecessário quanto quem fala que quer viver sem eletricidade.

Para mim, desconectar significou não aceitar qualquer aparelho roubando minha atenção. Desativei todas as notificações do celular e do computador (sim, até WhatsApp e telefone), inclusive as bolinhas vermelhas. Apaguei aplicativos de redes sociais e deixava o telefone o mais longe possível.

Ainda usava o computador para escrever, fazer compras online, lia Kindle e controlava luzes e som da casa pelo celular. Os únicos apps que podiam me “interromper” eram o de calendário e o de delivery de comida.

Como qualquer forma de abstinência, a primeira semana foi difícil. Sem as redes preenchendo cada intervalo do meu tempo, troquei minha obsessão de rolar o feed por uma obsessão por ler notícias.

Sem feeds algorítmicos, me entregando o mesmo de sempre, me expus a uma gama maior de opiniões e histórias, de repente, me vi conseguindo terminar uma edição inteira da The Economist, tirei do atraso todas as edições da Wired e quando menos percebo estava afundado nas notícias de cotidiano da Folha.

Ao ler notícias, ainda sentia aquela coceira pra compartilhar links. Mas agora não havia ninguém com quem compartilhar. Estava lendo puramente por ler, compartilhando um momento com ninguém além do autor. Isso tornou a leitura e o pensamento um ato privado, sem a tentação de ser performático ao compartilhar minhas opiniões.

Na segunda semana, o ritmo frenético de uma mente que estava viciada em conteúdo desacelerou. Comecei a ler obras mais chatas complexas, que nunca me imaginei conseguindo focar antes, como Seneca, Source of the Self, e embora não consegui terminar Dostoiévski, pelo menos li três capítulos.

A leitura exige sua atenção; enquanto as telas a roubam. Escolha com sabedoria como dedicar seu foco

Deixava minha mente viajar para onde quisesse, sem direção. Numa dessas reflexões, me dei conta de que nunca tivesse me permitido descansar, que nunca havia tirado férias. Pelo menos não de forma efetiva.

Eu nunca fui do tipo que levava o computador nas férias, meus colegas sempre respeitaram meu tempo, evitando me contatar. Mesmo assim, mesmo estando na praia a milhares de quilômetros de distância da minha rotina, eu não conseguia me desligar completamente. Ficava ansioso com as demandas me aguardando quando voltasse. 

Embora eu tirasse férias literalmente, minha mente não desligava de verdade. Como se eu tivesse lido o manual "Como tirar férias" e seguia à risca as instruções, mas nunca absorvi a vibe, a alma.

Sem a enxurrada de posts e notificações, percebi que, para pensar com clareza, é preciso ter a mente vazia. Comecei a explorar ideias e revisitar experiências que antes estavam sufocadas, eu não teria tido os insights acima nesse texto, nem muitos dos que resultaram nos artigos que você lerá nas próximas semanas, se não fosse esse período de reflexão.